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Em dicurso directo, a jornalista da SIC Lúcia Gonçalves, 36 anos, desvenda as emoções por detrás do programa Vencer o Cancro. "
A ignorância serve-se do medo", diz. "E
a informação pode não salvar - mas ajuda".
Zé Gabriel, meu grande amigo e mestre da rádio, foi roubado à vida por um cancro. Lembro--me de que, na ligeireza dos meus 23 anos, percebi que a palavra tinha o peso de uma coisa grave, mas o Zé iludia todos com a sua vontade de trabalhar e a forma obstinada com que encarava as dificuldades. Teve o cancro por companhia ainda durante uns anos, até que o inimigo levou a melhor. Guardo dessa fase a indignação do Zé, contra a dita "doença prolongada"; se ia morrer, que lhe dessem a dignidade de ter sido o lutador contra uma doença identificada e não a vítima de um mal anónimo.
Mas a "coisa ruim" voltou a atacar o meu sossego quando, há poucos anos, comecei a percorrer com o meu pai os corredores do Instituto Português de Oncologia do Porto. Os pais confrontam-nos com o nosso efémero e, aos 30 anos, o cancro já desafiava a minha relação de empréstimo com o mundo.
O primeiro embate é de profunda incredulidade. Logo à partida, a nossa mente está contaminada. Quem passa pela situação faz os raciocínios mais dolorosos: "Tem cura? Vou morrer? Vai doer?" Na sala de espera da Urologia, como em muitas outras, os doentes trocam as suas intimidades de Medicina como quem troca cromos. Os tratamentos que já fizeram, os ditos especialistas que já visitaram, as mezinhas que lhes aconselharam. Sentem-se perdidos. Náufragos num mar de dúvidas e medos.
Achei que não podia ser só mais uma testemunha. Defendo um jornalismo muito mais do que observador da coisa mundana. Acho que, em algumas circunstâncias, para construir é preciso desmontar primeiro. Desta vivência surgiu o conceito, que hoje é um bem sucedido formato de televisão, de Vencer o Cancro. (...)
Um símbolo chamado Raquel
Impressionaram-me muitas estórias. O casal que não fazia amor porque achava que o cancro era contagioso. A mãe que não queria ficar acamada porque estava sozinha com os filhos. O doente que vivia o cancro em segredo e em solidão. A impotência de pais perante um papão ganancioso que ameaçava roubar-lhes a filha. Os doentes que preferem ser tratados em hospitais gerais do que num instituto de Oncologia, evitando, assim, um lugar que, para eles, significa uma vida monocromática e onde se vai para morrer. O casamento que não resistiu à pressão.
O cancro fortalece ou dilacera as relações. Expõe as nossas feridas interiores, num momento da vida em que nos esforçamos para que a cicatriz se mantenha tal como está. Depois do choque, da negação, a maioria consegue manter as aparências e, muitas vezes, contra a frieza da Matemática, superar-se.
De todas as imagens, guardo as brincadeiras de Raquel, na água, com os filhos. Uma resistente de cancro da mama. Sempre disponível para motivar os outros, além dela própria. O cancro voltou a pregar-lhe uma rasteira. Mal sabe ele que, com a Raquel, não são favas contadas. Vai ter luta. Os tratamentos debilitantes, o desgaste psicológico, nada vai abalar a fé desta mulher. Tal como muitas e muitos, é tentada pela revolta e pela tristeza. Mas, mesmo com as células doentes, Raquel sabe que é preciso preservar a mente. É aqui, aliás, que começa ou acaba a resistência.
Podemos não conseguir arrancar o mal pela raiz, mas podemos enfrentá-lo. Não como maratonistas, mas com um fôlego de cada vez - aprendendo a conviver com ele e... a vencê-lo."
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